Entrevista exclusiva com Marcelo Morales, Secretário de Estado de Pesquisa e Inovação Científica do MCTI




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Entrevista exclusiva com Marcelo Morales, Secretário de Estado de Pesquisa e Formação Científica do MCTI

Criado no final da década de 60, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) tem como objetivo ser o principal instrumento para impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Após ter passado por processos de contingenciamento de gastos, nos últimos anos, o cenário mudou com a recente aprovação da Lei Complementar 177, que veda a limitação de empenho e movimentação financeira relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas pelo FNDCT.

A ABBI conversou com o Secretário de Estado de Pesquisa e Formação Científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (SEPEF/MCTI), Marcelo Morales, sobre as novas perspectivas que se abrem para o Brasil diante da novidade.

ABBI: Qual a importância do FNDCT para o desenvolvimento científico e tecnológico do país e qual o papel do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações no Fundo?

Marcelo Morales: O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) é certamente o principal e mais importante instrumento de financiamento para o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação do país. Ele foi criado com o objetivo de fomentar os programas e projetos prioritários para o desenvolvimento nacional, e tem origem em diversas fontes de receita. É importante ressaltar que, através dos recursos do Fundo, formaram-se as bases que criaram todas as formas de enfrentamento aos desafios globais que possuímos, estruturando o Sistema Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação. Dessa forma, nós pudemos dar respostas rápidas a emergências, e aqui eu cito o caso da pandemia pela qual estamos passando. Graças a décadas de investimento em ciências básicas, pudemos mobilizar emergencialmente nossas capacidades científicas e tecnológicas, em esforços conjuntos, para o enfrentamento da pandemia, trabalhando no desenvolvimento de testes de diagnósticos, tratamentos, vacinas e ainda para a produção de conhecimento sobre o SARS-CoV-2.
O FNDCT permitirá ao MCTI cumprir sua missão de gerar conhecimento, gerar riqueza compartilhada e melhorar a qualidade de vida dos brasileiros.

ABBI: Como é constituído o Fundo e de onde vêm seus valores?

Marcelo Morales: Existem múltiplas fontes de arrecadação que estruturam os chamados Fundos Setoriais, que são responsáveis por direcionar a aplicação dos recursos. A composição do FNDCT vem de percentuais de arrecadação aplicados sobre os royalties da produção de petróleo, de empresas do setor elétrico, da exploração dos sistemas de comunicação, da compensação financeira obtida pela utilização de recursos hídricos para energia elétrica, do faturamento bruto de empresas que produzam bens e serviços de informática e automação, do fundo da Marinha Mercantil, além do retorno dos empréstimos que o FNDCT concede a Finep, uma das principais agências responsáveis por operar os recursos do Fundo.

ABBI: De que forma o descontingenciamento do FNDCT irá impactar o desenvolvimento da bioeconomia brasileira a exemplo dos investimentos já aplicados no Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação na Bioeconomia (PACTI Bioeconomia) e no programa ODBio (Oportunidades e Desafios da Bioeconomia)?

Marcelo Morales: O Fundo pode cooperar com o desenvolvimento da bioeconomia, que tem intersecção com pelo menos outros seis fundos: CT-Agro, CT-Saúde, CT-Biotec, CT-VerdeAmarelo, CT-Amazônia, e ainda, na transversal, o CT-Infraestrutura. Apesar de o Brasil já despontar como um país de destaque no uso sustentável da biodiversidade, para assumir lideranças e participar do movimento global do Green New Deal, vai precisar de muito esforço em P&D, primeiramente. Estamos finalizando a primeira etapa do ODBio,que demonstrou ser a bioeconomia uma das principais impulsionadoras do desenvolvimento sustentável e da prosperidade compartilhada no país. Isso reflete muito as missões do próprio MCTI. Uma das principais linhas de ação detectadas dentro do projeto ODBio é o fortalecimento das cadeias produtivas baseadas na biodiversidade brasileira. Além de promovê-las e de agregar valor pelo desenvolvimento de produtos e serviços, trabalhamos para que esse valor seja retido, em sua maior parte, pelas comunidades. Temos exemplos como os projetos na Amazônia com as cadeias produtivas do açaí e do cupuaçu, onde estamos desenvolvendo tecnologia para a desidratação da polpa utilizando energias renováveis, sempre focando na sustentabilidade. Neste sistema, o açaí é processado numa pequena fábrica adaptada a um container, saindo limpo, sem caroço e em pó do outro lado. O valor agregado é altíssimo, aumenta muito em relação à polpa tradicionalmente comercializada e que possui altas taxas de perdas até seu consumo final. Além disso, parte dos caroços vai para a produção de bioenergia enquanto outra parte poderá ser destinada a outros fins que já estão em fase de verificação, como para a fabricação de materiais construtivos.

Há ainda o licuri, na Caatinga, com um trabalho de identificação dos potenciais biológicos do óleo da amêndoa do fruto. Já sabemos que ele tem potenciais cosmetológicos e farmacológicos, e estamos fazendo um aproveitamento total do licuri, inclusive para alimentos, podendo tender para a área de ingredientes para a produção de proteínas alternativas a partir dos resíduos do fruto, por exemplo. Cabe lembrar que ele já é utilizado para a alimentação humana e animal, mas com essas descobertas poderemos desenvolver novos produtos e gerar renda para as comunidades da Caatinga.

Além disso, outro projeto em andamento envolve a pesca de piracuru de manejo. Estamos desenhando uma unidade processadora de pescado flutuante, movido a energia solar e desenvolvida com tecnologias e materiais locais, que permitirá processar os peixes de acordo com as exigências higiênico-sanitárias, sanando os riscos para quem vai comer e para quem está manuseando o peixe. Assim, a carne será comercializada não somente pelas comunidades locais, mas poderá ser comercializada para além do município, incluindo outros estados e mesmo para fora do país, já que terá um selo de inspeção. Isso tudo agrega valor e melhora a qualidade de vida das populações locais, que antes trabalhava em condições insalubres. São todos projetos voltados para economia circular, e o Brasil realmente pode ser exemplo nesse tipo de desenvolvimento. Na parte de fármacos, o país é um potencial detentor de várias moléculas de interesse, de enzimas, de fungos amazônicos para decomposição de matéria vegetal. Estamos prestando muita atenção nas possiblidades de desenvolvimento de plataformas biológicas a partir de toda essa mega biodiversidade que temos.

Então, todas essas linhas citadas podem ser apoiadas pelo FNDCT, através de formação de recursos humanos, de infraestrutura, de fomento à P&D. Desta forma, também podemos desenvolver e fortalecer nossa bioindústria.

ABBI: Entre 2012 e 2014, o Programa PAISS foi um grande propulsor da bioinovação no Brasil. O descontingenciamento do FNDCT este ano pode ser considerado como o segundo grande propulsor para a área? Por quê?

Marcelo Morales:  O mundo todo está se preparando para o Green New Deal e o Brasil tem todas as oportunidades para ser um dos líderes nesse novo ciclo econômico, pois podemos impulsionar essa nova retomada de desenvolvimento econômico e social global a partir de bases sustentáveis. É esperado que o Fundo venha apoiar projetos similares ao PAISS e ao PADIQ, que é um projeto voltado para o desenvolvimento de químicos. Percebemos na primeira edição do PADIQ que uma boa parte do que a indústria química considerou como novas oportunidades era exatamente a utilização de biomassa como matéria-prima. Mas nós ainda precisamos fortalecer políticas voltadas a químicos de fontes renováveis, estamos muito incipientes em políticas públicas para o desenvolvimento deles. No entanto, é uma área que tem um potencial enorme, especialmente considerando a nossa balança comercial internacional, que é muito impactada pela indústria química. Parte desse balanço da indústria química é para suprir as demandas da nossa agroindústria. Ou seja, a demanda por químicos no agronegócio, um dos carros-chefes da economia, impacta enormemente a balança comercial. Então, se desenvolvermos parte desses químicos a partir de biomassa, internamente, vamos diminuir muito esse impacto. Estes são alguns dos temas que estamos considerando que serão impulsionados pelo FNDCT. Se contássemos apenas com o nosso orçamento hoje, isso seria praticamente impossível, mas com o Fundo podemos entrar em outro patamar de investimento e desenvolvimento nacional.

ABBI: O combate à pandemia de Covid-19 pode despertar a importância de iniciativas em bioinovação e, consequentemente, no FNDCT, no Brasil?

Marcelo Morales: A bioeconomia tem a característica de ser plural e contar com muitas oportunidades e desafios. Em especial no contexto regional, nós temos vários biomas e várias aptidões regionais. O FNDCT vai permitir planejar e avançar em pautas importantes do pós-pandemia. A retomada do crescimento econômico será um dos principais desafios do Brasil, e só será possível a partir da definição de programas e projetos que sejam estruturantes para o desenvolvimento dos setores chave da nossa economia, e também da sociedade brasileira, utilizando o máximo da nossa capacidade científica, tecnológica e de inovação. Caso contrário, a gente vai ficar para trás. Nosso desenvolvimento em ciência, tecnologia e inovação deve ser contínuo, sob o risco de nos tornarmos dependentes dos desenvolvimentos feitos em outros países, como aconteceu durante a pandemia, não apenas com o Brasil, mas com vários países no mundo. E, novamente, o FNDCT foi o principal instrumento de financiamento para o desenvolvimento e a capacidade que a gente tem hoje. Eu cito como exemplo aqui a própria bioeconomia. O Brasil tem condições de desenvolver uma bioeconomia única, muito por conta da nossa mega biodiversidade e da nossa grande produção agrícola. Temos uma oportunidade única quanto aos desafios também para o desenvolvimento desse setor, e a gente tem condições de alavancar a bioeconomia com apoio do Fundo. O uso sustentável e racional da nossa biodiversidade, por exemplo, no desenvolvimento de novos produtos, processos e serviços vai demandar grande conhecimento e capacidade tecnológica que só os cientistas podem proporcionar. Ao mesmo tempo, o Fundo pode trazer grandes impactos socioeconômicos para o Brasil, com a geração de conhecimento, geração de riqueza, e assim, proporcionar a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros. Por sinal, essas são as missões do MCTI.


ABBI: O senhor gostaria de acrescentar algum outro ponto nesta conversa?

Marcelo Morales: Hoje, com bioenergia, é possível medir a emissão de CO2 e de gases do efeito estufa, de uma forma geral, por cada quilojoule de energia. Agora nós temos o desafio de verificar uma maneira de aplicar isso em outros setores, como por exemplo no setor químico, no segmento de alimentos. Uma vez que a produção ocorra de forma sustentável, como é possível ser remunerado para além do próprio produto, beneficiando aqueles sistemas e processos mais sustentáveis? Está aí um tipo de desafio que nós temos pela frente, além de questões como aquelas que envolvem os serviços ecossistêmicos, do uso racional e sustentável da floresta, da manutenção de mananciais, do serviços de polinização. São vários os assuntos sobre os quais estamos nos debruçado bastante aqui no MCTI e contando, sempre, com o apoio dos setores governamental, acadêmico, empresarial e da sociedade civil organizada.