Entrevista Exclusiva com o Professor Titular da Unicamp, Gonçalo Pereira

Desde o século XIX é de conhecimento dos cientistas que as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera causam o aquecimento global. Grande parte dessas emissões tem origem na queima de combustíveis fósseis como o carvão mineral, o gás natural e o petróleo. Ainda assim, o uso de matriz energética não renovável é predominante em todo o mundo, de acordo com dados da Empresa de Pesquisa Energética. Somando a participação da energia hidráulica e da biomassa, as renováveis totalizam 14%, aproximadamente.

Nesta entrevista, o Professor Titular da Unicamp e Chefe do Laboratório de Genômica e Bioenergia e do Programa de Doutorado em Bioenergia (Unicamp-USP-Unesp), Gonçalo Pereira, apresenta o potencial da bioeconomia para reduzir as emissões de CO2, e traz exemplos práticos do emprego da bioinovação na produção da fonte de energia renovável dentro do modelo de Economia Circular.

ABBI: O que é Economia Circular e qual é sua relação com a bioeconomia? 

GP:  Na verdade, não existe uma definição clara para bioeconomia. O que é a economia? Eco é casa, e nomia é gestão, portanto economia é a gestão do espaço. Por isso o nome da economia devia ser ergonomia, pois ergo é energia. No fundo, tudo, sem exceção, é energia que se apresenta em diferentes formas, e o que você faz na economia é a gestão dessa energia. Resumindo rapidamente o nosso histórico civilizatório, para mostrar o beco em que nos metemos e como podemos sair desse lugar, já que este é o papel da bioeconomia. Basicamente, antes da revolução industrial, houve uma civilização que vivia do que eu chamaria de economia das cavernas ou bioeconomia primária, e que não fazia o uso dos recursos fósseis. Até que um sujeito inventou uma máquina, e essa máquina passou a fazer o trabalho de mil pessoas, porém consumia o equivalente a um milhão de pessoas. Como a madeira não cresce em velocidade suficiente, aconteceu a devastação florestal na Europa. Em seguida, teve início o uso do carvão, que vem das florestas antigas, de um período chamado Carbonífero. O sol criou aquelas florestas gigantescas que morreram e sedimentaram porque não existia microrganismos para que ocorresse a conversão em CO2. O homem, com a sua inteligência, pegou o carvão e começou a movimentar a revolução industrial. Mais à frente, ele encontrou o petróleo – microalgas que morreram e sedimentavam -, que destilado passou a ser usado na iluminação pública. Aí veio a lâmpada elétrica. Depois vieram os automóveis e a revolução do Ford, e o petróleo começou a ser empregado na mobilidade, pois nós tendemos a nos movimentar. Repare que todos os conflitos do último século ocorreram em decorrência do petróleo. Por essa razão eu digo que o nome da economia devia ser ergonomia. Bem, nós descobrimos que há energia acumulada e passamos a colocar essa energia para fora. Essa energia virou CO2 e pelo fato de a atmosfera receber uma quantidade muito grande de CO2 ocorreu um aquecimento, responsável por alterar completamente a circulação de ar global, e é isso que está acontecendo com o planeta.

ABBI: De que modo a bioinovação atua dentro do modelo da Economia Circular?

GP: 
A bioinovação é bem mais do que a aplicação de processos biotecnológicos para fazer novos produtos. A bioeconomia é a capacidade de desenvolvimento da cadeia de energia de uma forma bio, com o mínimo de emissão de CO2 possível e com o máximo de reutilização dos insumos colocados, além da utilização maximizada do que o solo proporciona, de maneira que o maior número de pessoas tenha uma vida digna através da distribuição de renda, a partir de empregos. Lembrando que nós, seres humanos, somos bio e as plantas são biorrefinarias naturais: pegam a luz do sol e produzem todo tipo de produto que você queira.

ABBI: Comparado a outros países, o Brasil se encontra em qual fase da Economia Circular atualmente? No cenário global, é possível avaliar o lugar do país? 

GP: No sentido de reciclar os produtos, eu diria que já é relativamente incipiente, e muito aquém do que poderia ser. Os lixões são o maior sinal de que o trabalho de reciclagem energética não está sendo feito corretamente. Nós temos os catadores de rua fazendo um trabalho extraordinário que, infelizmente, não é reconhecido. A taxa de reciclo de alumínio brasileiro, para se ter ideia, é uma das maiores do mundo, provocada pela carência. Uma vez que exista essa dificuldade, precisamos convertê-la em oportunidade. Outro fato importante se refere ao nosso potencial gigantesco para a produção de biogás. Para cada litro de etanol, por exemplo, se produz 13 litros de vinhaça. A maioria das usinas está jogando isso de volta no campo, e o carbono existente ali vira CO2 de novo. Entretanto, se esse material for reciclado será convertido em metano, em uma quantidade gigantesca de energia. Calcula-se que só em resíduo, o Brasil tenha o equivalente a uma usina de Itaipu. Nós temos tudo para liderar este setor.

ABBI: A vinhaça quando não é reaproveitada se torna tóxica? De que modo a bioinovação atua dentro desse modelo econômico?  

GP: A vinhaça é um caso exemplar de Economia Circular. O sol produziu a cana-de-açúcar. A cana extrai do solo, pela raiz, uma série de nutrientes chamados sais minerais – nitrogênio, enxofre, fósforo. A maioria deles é carbono que vem do CO2 e foi fixado pela energia do sol, pois sempre há energia e toda energia vem do sol. Essa cana é esmagada e dela produzido o caldo; o caldo é fermentando através da levedura e produz o etanol e a vinhaça. O bagaço queimado vira energia elétrica. A energia elétrica do bagaço é a segunda maior fonte de energia do país, nos dias de hoje. Economia circular pura: começou com CO2, queima o bagaço e vira CO2 de volta. A vinhaça possui duas coisas: uma quantidade grande de carbono que não foi utilizada e todos aqueles sais minerais que a planta pegou. Atualmente isso é levado de volta para o campo, o que é um adubo muito bom. Só que a vinhaça possui uma quantidade de carbono que não é fertilizante. Esse carbono volta para o campo, degrada e vira CO2, sem realizar nenhum trabalho. Enquanto é possível converter todo o carbono existente na vinhaça em uma forma de combustível – o biogás. Assim sobram os sais minerais que voltariam para o campo como um super fertilizante. É necessário que as usinas brasileiras de etanol voltem a operar, sem emitir nenhum CO2 e com capacidade de capturar CO2 líquido. Este é um modelo viável de ser executado através da Economia Circular pela ótica da bioeconomia.

ABBI: De que a forma a indústria nacional pode fazer a transição do modelo de economia linear para o modelo de Economia Circular? E quanto tempo isso levaria? Podemos usar o exemplo das usinas de cana-de-açúcar para ficar num segmento só.

GP: Tudo vai depender de políticas públicas, e vai depender muito do lobby tecnológico. É preciso ter em mente que a indústria automobilística é fundamental, porque ela define o futuro da humanidade, eu diria. Desta forma a ergonomia do carro é fundamental. No momento, a ideia do carro elétrico no mundo está em evidência. No entanto, a produção de bateria emite uma quantidade gigantesca de CO2 devido à extração dos minérios utilizados nela, e a maioria de energia produzida é de fonte fóssil. Mas, é viável investir no desenvolvimento tecnológico de forma que um carro elétrico utilize o etanol como bateria, através de uma tecnologia chamada célula combustível. Aí seria o melhor dos dois mundos: o carro elétrico movimentado por etanol. Isto é, a tecnologia de ponta de altíssima qualidade, a partir de uma cadeia que vai desde o campo, toda movida pelo sol. Neste caso colocamos em prática o principal papel da bioeconomia: gerar emprego. Eu não acho a energia eólica e solar uma boa ideia, porque são todas tecnologias de capital intensivo e não geram emprego. O problema que o mundo enfrenta é de distribuição e não de produção. O que a bioeconomia traz de determinante, decisivo e diferente do que temos feito, até o momento, é gerar energia através da geração de empregos. Voltando a pergunta, na hipótese de o Brasil entrar no lobby do carro elétrico à bateria, todas as maravilhas aqui elencadas sobre o etanol vão por água abaixo. Por esta razão é importante o papel da universidade, onde o conhecimento é produzido.

ABBI: E qual é o papel da indústria e da academia na viabilização da Economia Circular? 

GP: Caso a interação não aconteça, nós não vamos ter sucesso. O Brasil é uma grande potência científica. O que nos diferencia como homem é a nossa curiosidade. A ciência é justamente a sistematização dessa curiosidade e a academia existe para organizar: atrair os mais curiosos e produzir a curiosidade sistematizada. Nós somos curiosos porque a evolução nos fez assim para que pudéssemos resolver problemas. Não há como resolver problema sem conhecimento, e o conhecimento está na academia. Corremos um risco muito grande de nos tornarmos um país agrícola. Ao invés de exportarmos soja, nós devíamos estar produzindo biodiesel. Nós estamos perdendo dinheiro e não gerando emprego, ao tornar a agricultura uma atividade de capital intensivo. As pessoas vão morrer de sede dentro de um lago, caso não refaçamos o modelo. Tem que haver política pública inteligente, capaz de fazer com que o empresário lucre com aquilo que é importante para o país e não a qualquer custo.

ABBI: Quais são as políticas públicas necessárias para estimular o desenvolvimento da Economia Circular? 

GP: Uma política industrial fortíssima, que inclui regulamentação da política de créditos de carbono, além da implementação do programa RenovaBio, o combustível do futuro.

ABBI: Quais resultados a Economia Circular pode gerar dos pontos de vista ambiental e econômico para as empresas, para o país e para a sociedade em geral?

GP: O Brasil possui fartura de pasto, algo em torno de 1,9 milhão de quilômetros quadrados de pasto. Basta andar em qualquer estrada para ver a quantidade de cupinzeiros, o que significa que aquele pasto é de péssima qualidade. Ao investir em um negócio de energia, comprar um pasto degradado para plantar cana-de-açúcar e fazer uma usina, a primeira coisa a ser feita, por lei, é reflorestar 30% da área comprada e mantê-la como reserva ambiental. Aí o empresário planta cana, captura CO2, produz energia elétrica, biogás, ração animal, e se quiser ir adiante, plástico verde. E o CO2 adicional que eventualmente produzir, poderá ser enterrado e convertido em crédito de carbono, o chamado CBio, outra política fundamental da bioeconomia. Quando se faz a coisa direito, os corredores ecológicos são refeitos, conforme aconteceu no Estado de São Paulo. Tanto que o regresso das onças pardas virou um problema. A onça está no topo da cadeia alimentar; onde existe onça existem todos os outros animais. A melhor definição, que eu mesmo desenvolvi, é que a bioeconomia é a ciência do excesso. O oposto da economia, antes definida como a ciência da escassez. Uma vez que as coisas faltam é preciso ajustar, porque a demanda é sempre infinita, mas a oferta não. Com a bioeconomia é exequível limitar o excesso de energia que veio dos fósseis, redistribuir a produção dessa energia para gerar abundância, ao invés do excesso que gera má distribuição de renda.